RESUMO: O presente estudo pretende promover uma breve reflexão acerca da aplicação da teoria dos precedentes no ordenamento jurídico brasileiro e do aparente conflito entre o princípio da segurança jurídica e a dinamicidade do direito jurisprudencial. Nesse sentido, a presente pesquisa busca explorar,a partir de análises sobre as disposições constitucionais, legais, posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais, as nuances que envolvem os sistemas civil law e common law, especialmente no que se refere à aplicação da jurisprudência com força vinculante.
Palavras Chave: Civil law. Common Law. Teoria dos Precedentes. Jurisprudência. Dinamismo. Segurança jurídica.
ABSTRACT: The present study intends to promote a brief reflection on the application of the theory of precedents in the Brazilian legal system and the apparent conflict between the principle of legal certainty and the dynamics of jurisprudential law. In this sense, the present research seeks to explore, based on analyzes of constitutional, legal, doctrinal and jurisprudential positions, the nuances that involve the civil law and common law systems, especially with regard to the application of jurisprudence with binding force.
Keywords: Civil law. Common Law. Theory of Precedent. Jurisprudence. Dynamism. Legal certainty.
1. INTRODUÇÃO
Numa abordagem histórica aprofundada, sabe-se da existência de uma doutrina de precedentes na tradição jurídica do common law, razão pela qual se faz-se necessário verificar as razões pelas quais os países filiados à tradição jurídica do civil law rejeitaram o reconhecimento de valor jurídico aos precedentes.
Contudo, eventos históricos relevantes e alguns pensamentos correntes influenciaram profundamente essas tradições.
A temática aborda a visão acerca da justiça na atualidade em razão dos contrastes jurisprudenciais que afetam a segurança jurídica e a igualdade na aplicação do direito.
A aplicação dos precedentes permite que seja dada uma interpretação que se adequa às exigências sociais e econômicas da sociedade. Além disso, por meio da aplicação daqueles é possível minimizar a imprevisibilidade quanto à resolução dos litígios.
É certo que a jurisprudência não pode apresentar um caráter estável. Todavia, não se pode aceitar que a alteração da jurisprudência, sobretudo perante os tribunais superiores, chegue ao ponto de comprometer a segurança jurídica e a credibilidade do Poder Judiciário.
Assim, é exigido dos operadores do direito que seja feita uma análise, à luz do caso concreto, para que se possa verificar se as razões da mudança de orientação do precedente podem sobrepor-se às razões da estabilidade e previsibilidade das decisões.
Em relação à presente investigação, esta utilizou o método dedutivo, por meio de pesquisa bibliográfica, utilizando-se de jurisprudências e referenciais teóricos, tomando por base as posições doutrinárias mais atuais.
2. OS SISTEMAS COMMON LAW E CIVIL LAW
O sistema da common law é fundamentado em precedentes, ao passo que o direito do sistema romano-germânico está especialmente assentado na lei. Os principais países que pertencem à tradição jurídica do common law são Austrália, Nova Zelândia, Canadá (Província de Quebec), Índia, Paquistão, Bangladesh, Quênia, Nigéria, Hong Kong, Guiana, Trinidad e Tobago e Barbados. Os Estados Unidos, salvo o Estado da Louisiana, são considerados um sistema misto, conquanto pertencente à common law (SOARES, 2000, p. 52).
A distinção entre as duas famílias (common law e civil law) não está no conteúdo do Direito, que, em razão de próximas afinidades econômicas, culturais e políticas, é análogo nos aspectos gerais, mas sim, a distinção reside na forma de individualização dos direitos. Marcelo Almeida apresenta como “principal distinção entre os dois modelos é a de que o sistema da common law caracteriza-se pelo direito costumeiro, desenvolvido pelos tribunais, enquanto que o da civil law caracteriza-se pelo direito escrito” (ALMEIDA, 2022, p. 62).
Disso deriva que tradicionalmente a lógica judiciária, no primeiro caso, é do tipo indutivo, isto é, de casos individuais extrai-se uma regra geral a ser aplicada para casos futuros. Nessa perspectiva, serve o processo de instrumento técnico para a constituição do próprio direito.
Já no segundo caso, a lógica judiciária é do tipo dedutivo, uma vez que da regra geral, que é a lei, deduz-se uma regra particular ao caso concreto, valendo-se como instrumento do Direito a legislação. Essa tem sido a fundamental e clássica distinção entre as duas tradições jurídicas, ao menos no que se refere às fontes do direito. Sobre o tema Juliana Cristina Luvizotto destaca que:
Distingue-se, ainda, a forma como os diferentes países que integram a tradição jurídica do common law relacionam os precedentes com o statute law, a lei escrita, e essa diferença fica evidente, por exemplo, ao se comparar os Estados Unidos, em que a influência do direito escrito é avassaladora e tem uma posição de criação do direito, muito mais vinculante que a Inglaterra, embora se possa dizer que em ambos os países o case law continue a ser a espinha dorsal do sistema. Observe-se, ainda, que os Estados Unidos possui uma Constituição escrita e rígida, diferentemente da Inglaterra. Pode-se afirmar que nos países do common law um único julgado é considerado como precedente, declarando a existência de uma norma jurídica para o caso, e é a partir deste caso que se extrai a regra para ser aplicada nos casos posteriores (LUVIZOTTO, 2017, p. 26).
Também, importante acrescentar a existência de alguns elementos constitutivos do sistema da common law que o particularizam frente ao sistema da civil law, quais sejam, a presença de um Poder Judiciário compacto, composto de um número menor de juízes, cujas decisões gozam de maior prestígio e autoridade; a diversa formação profissional dos juízes; a possibilidade de as cortes supremas selecionarem os casos a serem decididos, o que representa um volume muito inferior de trabalho, entre outros.
No que concerne aos efeitos dos precedentes, o sistema europeu-continental funda-se sobre a autoridade da coisa julgada, motivo pelo qual a força jurídica da sentença afeta somente as partes, não excedendo o caso concreto. Em regra, os precedentes não produzem efeitos contra todos, tendo somente força persuasiva, ainda que, muitas vezes, na prática, sejam observados. Já o sistema anglo-saxão observa a coisa julgada com os seus efeitos subjetivos limitados às partes, baseando-se na doutrina do stare decisis, tendo os precedentes força vinculante contra todos (DAVID, 2002, p. 356-357).
Em razão disso, a experiência do sistema da common law é um ponto de partida imprescindível, pelo fato de ser nela que os operadores do Direito acabaram desenvolvendo uma larga gama de termos e conceitos para discussão e análise dos precedentes.
No que diz respeito às razões determinantes da sua instituição, infere-se que o objetivo do stare decisis foi restringir a discricionariedade judicial, evitando-se incerteza, obscuridade, confusão e dificuldade na prestação jurisdicional, com o desígnio de buscar maior segurança jurídica na aplicação do direito. Não resta dúvida de que o princípio do vínculo aos precedentes (stare decisis) representa limite à criação judiciária e promove a estabilidade do direito (CAPPELLETTI, 1993, p. 84).
Com a instituição do caráter vinculativo dos precedentes, tornou-se possível limitar o papel político da atividade judicial. Ainda assim, é preciso reconhecer que a atividade jurisprudencial, na tradição anglo-saxônica, ainda confere maior poder ao juiz, que aplica o direito como argumento no caso concreto. Nesse sentido, a doutrina do stare decisis teve como objetivo que o case law adquirisse status de ciência, capaz de prever os resultados das controvérsias judiciais, atribuindo aos jurisdicionais certeza, uniformidade e segurança dos direitos (ALMEIDA, 2022, p. 63).
Diversamente, os ordenamentos jurídicos do sistema da civil law, ou puramente do Direito civil (nações sul-americanas e romano-germânicas), são caracterizados por formar um conjunto sistemático de regras lógicas, fechadas e rígidas. Nesse sistema, toda a espécie de questões pode e deve, teoricamente, ser resolvida pela interpretação de uma norma jurídica existente, representando o que se denomina de família de direito romano-germânica. Sua formação se deu a partir do Império Romano, passando pela influência da igreja católica e dos povos bárbaros, difundindo-se com a tradição escolar da antiguidade tardia, e por fim, consolidando-se como expressão cultural.
Na tradição romano-germânica, a fonte normativa está centrada no poder soberano, especialmente no Legislativo e, por exceção, no chefe do Poder Executivo. O julgador é o juiz-burocrata, operador lógico do direito, cuja aplicação ocorre por meio de demonstração (ZANETI JÚNIOR, 2007, p. 53). Sustenta-se que a lei é a fonte precípua das decisões judiciais, quer mediante a aplicação da letra expressa nos códigos, quer mediante a identificação da vontade do legislador, quando o caso não se subsume a uma hipótese prevista. O método jurídico reinante se funda na interpretação de textos escritos que sempre se supõem procedentes de um legislador (LUVIZOTTO, 2017, p. 41).
Na sua origem, o sistema da civil law procurou limitar a liberdade do julgador, com a adoção do princípio da legalidade e da crença que lhe é inerente, o que a common law buscou alcançar por meio da adoção do princípio-garantia do due process. A partir dessas premissas se induz que a lei escrita vincula estritamente o julgador, com o objetivo de eliminar sua vontade e, consequentemente, qualquer forma de arbitrariedade. Existe ainda a compreensão de que as normas jurídicas são o texto da lei, cujo sentido é dado pelo legislador, não cabendo ao juiz construir o seu sentido, contudo, trata-se de pura ficção, apesar de ainda persistir entre os juízes continentais para encobrir o caráter criador que aflora na doutrina e nas decisões judiciais.
Logo, os precedentes, nos países de civil law, não têm efeito vinculante, diversamente do que ocorre nos países de common law. Não significa que os precedentes sejam menos importantes na tradição romano-germânica. Justamente o oposto, posto que sem caráter vinculante, as orientações jurisprudenciais desempenham papel significativo.
Hoje em dia, a referência a ementas de acórdãos, por juízes e advogados, é bem mais frequente do que a referência a alguma disposição legal, o que não deixa de representar um incremento desordenado do uso dos precedentes, provocando algumas consequências inclusive indesejáveis, ainda mais diante de tecnologias modernas, como a internet. Também não se ignora que a referência aos precedentes ocorre, maioria das vezes, de forma padronizada, limitando-se aos ementários, cujo conteúdo às vezes não corresponde exatamente à fundamentação da decisão.
Todavia, no contexto da aplicação do direito na tradição romano-germânica permanece o questionamento acerca de os precedentes serem constantemente referidos e, muitas vezes, levados em consideração sendo ausente a sua força vinculante. Alguns especialistas explicam esse fenômeno equiparando jurisprudência ao costume, como fonte do Direito (FRANÇA, 1974, p. 178-179).
3. O PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA COMO FUNDAMENTO DOS PRECEDENTES
A doutrina situa o princípio da segurança jurídica, ou numa análise mais restrita, o da proteção da confiança, ao lado do princípio da igualdade, entre os fundamentos mais importantes da eficácia jurídica dos precedentes judiciais. Não se trata, contudo, de conceitos similares ou expressões sinônimas.
Voltando-se os olhos para proteção da confiança, trata-se de um reflexo da segurança jurídica, numa face subjetiva, aplicada à defesa dos interesses legítimos dos cidadãos nas relações jurídicas mantidas com o Poder Público.
Dessa forma, o princípio da proteção da confiança funciona como princípio e como direito fundamental individual, que apenas o privado reivindica em contraposição ao Estado. No que concerne às relações privadas, o princípio da proteção da confiança teria como equivalente o princípio da boa-fé (DERZI, 2009, p. 395).
O princípio da segurança pode ser analisado nas dimensões objetiva e subjetiva. Em uma perspectiva objetiva, recai esta sobre a ordem jurídica objetivamente considerada, exigindo-se determinados atributos que a qualificam. Pode-se destacar-se, nessa direção, a irretroatividade das leis, a previsibilidade dos atos estatais, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Quanto à perspectiva subjetiva, a segurança jurídica refere-se às relações mantidas entre os cidadãos em si e entre os cidadãos e o Poder Público. Sobressai-se, aqui, a proteção da confiança e das expectativas legítimas.
Nesse aspecto, pois, a segurança jurídica está vinculada à própria noção de dignidade da pessoa humana, princípio fundamental do Estado Democrático de Direito, a qual não será respeitada e resguardada quando as pessoas sejam atingidas por certo nível de instabilidade jurídica, razão pela qual não terão condições de confiar nas instituições sociais e estatais e nas próprias posições jurídicas.
4. A TEORIA NORMATIVA DOS PRECEDENTES
O entendimento desenvolvido a partir de leis ou de precedentes judiciais não diferencia em natureza, posto que tanto as leis como os precedentes precisam ser interpretados, estando sujeitos a um comum processo de desenvolvimento (WAMBIER, 2010). Além disso, a atividade de interpretação, em ambos os casos, compõem-se de atos de vontade, de escolhas e juízos de valor, nem passando perto de ser indiferente a cada conteúdo da experiência.
Observa-se que os precedentes, na teoria da argumentação jurídica de Robert Alexy, apresentam tanto relevância fática, quanto contribuição teórica ao direito, pois segundo o jus-filósofo alemão “uma teoria da argumentação jurídica que não considere o papel dos precedentes omitiria seus aspectos essenciais” (ALEXY, 2005, p. 264).
A doutrina majoritária reconhece a importância dos precedentes na aplicação do direito como guias orientadores da decisão adequada. Sobre sua essência, tem-se que o fundamento da orientação não é propriamente a experiência, uma vez que argumentar mediante o uso de precedentes não é o mesmo que argumentar com base na valoração do que a experiência ensinou ou com base no costume. Se assim fosse, não teria valor ou sentido a doutrina do stare decisis. Tomando-se uma decisão com base em um precedente, considera-se sobremaneira relevante o fato de a decisão ter sido proferida anteriormente, o que nem sempre mostra boas decisões.
Por meio da operacionalidade dos precedentes, é possível minimizar a imprevisibilidade da resolução da controvérsia frente ao órgão jurisdicional, tendo em vista que se busca a melhor decisão com base em critérios racionais, afastando-se outras decisões possíveis, contudo não aceitáveis.
O ordenamento jurídico brasileiro tem sido permeável à utilização dos precedentes judiciais na fundamentação das decisões judiciais, havendo extensa doutrina e jurisprudência que há tempos já o reconhecia, conforme decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça (LUVIZOTTO, 2017, p.30). Nesse sentido, Carlos Maximiliano, José Rogério Cruz e Tucci, Luiz Guilherme Marinoni, Maurício Ramires, Adriana de Moraes Vojvodic, Rodolfo de Camarco Mancuso.
Restou evidente que o precedente judicial, em qualquer sistema jurídico contemporâneo, é um dos elementos centrais do Estado Democrático de Direito, ao passo que garante o respeito a certos princípios de maior relevância no campo da aplicação das normas, tais como a igualdade na aplicação da lei, a proteção da confiança e a proibição da arbitrariedade.
5. A BUSCA PELO EQUILÍBRIO ENTRE A SEGURANÇA JURÍDICA E O DESENVOLVIMENTO DO DIREITO
Entre as questões problemáticas contidas na teoria dos precedentes judiciais está o fato de encontrar equilíbrio entre a segurança jurídica e o desenvolvimento do Direito, conflito expresso pela antítese entre previsibilidade e adaptação, representado pelas necessidades opostas da estabilidade e do progresso. É nesse aspecto que surge o questionamento, se é preferível a segurança jurídica ou o desenvolvimento do Direito.
Convive o Direito, inevitavelmente, com essas duas necessidades no plano material bem como no processual, uma vez que a finalidade da jurisdição não é somente a de acabar com os litígios, mas a de fazê-lo de forma justa. Essa característica revela o que Jürgen Habermas chama de “tensão entre facticidade e validade” imanente ao Direito. “Manifesta-se na jurisdição como tensão entre o princípio da segurança jurídica e a pretensão de tomar decisões corretas” (HABERMAS, 2003, p. 245).
Em síntese, parte-se da premissa de que a evolução é inerente ao Direito, tendo em vista que se busca a realização da justiça, função esta atribuída essencialmente à própria jurisprudência, que tem a incumbência de adaptar a ordem jurídica formulada às constantes mutações das conjunturas. Almejando essa adequação, a jurisprudência permite uma interpretação amoldada às exigências sociais por meio de juízos de valor que se revelam na realidade do momento do caso concreto.
Por essa razão, a jurisprudência não pode apresentar um caráter imóvel frente as normas jurídicas. O que não se pode aceitar, por outro lado, é que a alteração da jurisprudência, sobretudo perante os tribunais superiores, chegue ao ponto de comprometer a segurança jurídica e a credibilidade do Poder Judiciário. A questão, portanto, parece estar na identificação de alguns limites orientadores que, se existentes, precisam restar assentados.
É forçoso reconhecer, antecipadamente, que não é tarefa fácil estabelecer quando se deve buscar o resultado previsível e quando, ao contrário, deve-se modificar o entendimento na busca do resultado ideal ao caso sob julgamento. A esse respeito salienta Almiro do Couto e Silva:
É certo que o futuro não pode ser um perpétuo prisioneiro do passado, nem podem a segurança jurídica e a proteção à confiança se transformar em valores absolutos, capazes de petrificar a ordem jurídica, imobilizando o Estado e impedindo-o de realizar as mudanças que o interesse público estaria a reclamar. Mas, de outra parte, não é igualmente admissível que o Estado seja autorizado, em todas as circunstâncias, a adotar novas providências em contradição com as que foram por ele próprio impostas, surpreendendo os que acreditaram nos atos do Poder Público (SILVA, 2005, p. 37).
A existência desse conflito permanente é revelada pela própria história do Direito e nem sempre foi resolvido de maneira uniforme. A título de exemplo, a história moderna confirma que a segurança jurídica foi um dos grandes objetivos da Revolução Francesa, impondo-se o império da lei frente ao juiz, cuja função era apenas de reconhecer a vontade do legislador. Era o primado da legislação sobre a jurisdição, gerando uma jurisprudência mecânica e não criativa, consequência de uma exigência de certeza (PEREIRA, 2021, p. 136).
Após dois séculos, esse modelo restou superado. Atualmente o juiz tem assegurado um poder “criador” do direito, reconhecendo-lhe uma margem discricionária na interpretação/aplicação das normas jurídicas. Passa-se ao primado do direito justo, apropriado à realidade, conduzindo o juiz a uma posição em que a sua atividade complementa a tarefa iniciada pelo legislador. Porém, o aspecto negativo é que restou a segurança jurídica relegada a um segundo plano, gerando, frequentemente, uma jurisprudência desuniforme e inconstante, sujeita a critérios subjetivos em busca de um objetivo nobre, a justiça (DUARTE, 2021, p. 162).
A teoria do precedente tem como grande desafio encontrar essa adequada combinação, entre o novo e o velho dentro do Estado. Nesse panorama, mister ter o juiz boa dose aos valores sociais e às mutações axiológicas da sua sociedade. Antes de negar a possibilidade de qualquer antagonismo, deve-se buscar a harmonização, pois não há espaço para justiça senão através da segurança jurídica (KNIJNIK, 1995, p. 217).
Exige-se, portanto, o exame para constatar se as razões da mudança de orientação podem sobrepor-se às razões da consistência, estabilidade e previsibilidade das decisões, o que deve ser empreendido com reflexão racional.
Por último, acrescenta-se que devem os questionamentos e os aperfeiçoamentos justificar-se. Além do mais, sendo reconhecida a necessidade de mudança, também é preciso discipliná-la de forma a minorar ao máximo os seus efeitos negativos.
O ponto de partida na busca dessa disciplina deve ser o reconhecimento de que a jurisprudência exerce um papel significativo na evolução do Direito. Não seria correto utilizar a teoria dos precedentes para impedir o desenvolvimento do ordenamento jurídico em compasso com a evolução histórica. Não se pode “confundir a segurança jurídica com a ‘ideologia’ da segurança, que tem por objetivo o imobilismo social” (AZEVEDO, 1995, p. 14). Nesse seguimento, a manutenção ofuscada do status quo e o excesso de previsibilidade seriam nocivos ao sistema.
Não pode, pois, o sistema inviabilizar essa prática e também não pode chegar ao extremo de estabelecer sanções ao descumprimento de um dever de acatamento das decisões dos tribunais superiores em razão de um princípio hierárquico. Todavia, é inegável que, hoje, o fenômeno da criação da jurisprudência decorre, especialmente, das funções exercidas pelas cortes superiores, cujas decisões, por sua autoridade intrínseca, têm o fim de uniformizar entendimentos, bem como estabelecer novos precedentes, tidos como paradigmáticos à decisão de casos futuros equivalentes.
Espontaneamente esse feitio da teoria dos precedentes não passou despercebido da common law, que, em certo período, diminuiu o rigor do princípio do stare decisis, visto que reconheceu que a segurança jurídica não significa garantia de previsão absoluta.
A questão é que o desenvolvimento do Direito mediante a interpretação dos juízes pode provocar uma multiplicidade de critérios interpretativos, o que acabaria por afetar a própria segurança jurídica. Assim sendo, deve-se buscar um direito jurisprudencial que não aplique, de forma excessivamente rígida, a regra do stare decisis, tendo um “potencial de flexibilidade, de concretude e de adaptabilidade às circunstâncias imprevisíveis do caso” (CAPPELLETTI, 1993, p. 85).
Na crise entre a estabilidade e a flexibilidade do Direito, o precedente surge como o terreno seguro entre o culto do passado e a consagração do presente, com o propósito de alcançar a medida exata de previsibilidade. A pretensão é a mediação racional entre a exigência de estabilidade e a exigência de transformação, sem incorrer em construções formais de grande abstração, em detrimento da riqueza dos casos concretos (MARTINS, 2021, p. 457-459).
Almejando o equilíbrio entre segurança jurídica e desenvolvimento do Direito, a teoria dos precedentes não pode impedir a ocorrência de contrastes diacrônicos, desde que não sejam repetitivos e numerosos. De fato, deve-se evitar a ocorrência de contrastes simultâneos, ou seja, orientações divergentes que coexistem no tempo, porque estas são impresumíveis (FARIA, 2004, p. 20).
Logo, o objetivo a ser alcançado é a “segurança do movimento” ou “estabilidade com mudança”, para que o Direito seja estável, contudo não permaneça inerte. Noutras palavras, o que se deve evitar é a petrificação do Direito, em razão da sublimação da segurança jurídica, não permitindo que a modificação do Direito seja livre de quaisquer peias, o que equivale à segurança jurídica não em uma perspectiva estática, mas sim dinâmica.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
É inegável que o precedente, seja ele vertical ou horizontal, tem um valor dentro e fora do processo, contudo, não pode esse valor ser considerado absoluto, sendo relativo e se modelando diversamente, conforme as variações da realidade histórica e política.
No exame em questão não seria diferente pelo fato de os princípios, na sua essência, não traduzirem preceitos, senão valores que, por natureza, são elásticos, sem contornos e limites precisos.
Em consequência, o valor da segurança jurídica, como qualquer outro, não pode ser absoluto, uma vez que a previsibilidade não é evidente e inderrogável. Comporta-se de valor que deve ser sopesado por elementos cognitivos e controláveis, buscando a encontrar um equilíbrio entre a rigidez e a incerteza. O que não se pode admitir é que o valor da segurança jurídica implique, por exemplo, “manutenção cega e indiscriminada do status quo”.
É indubitável, por consequência, que, frente a mudança de paradigma decorrente da passagem do normativismo legalista para o direito fundamental principiológico, deixou a segurança jurídica de ser estática e passou a conviver com um Direito muito mais flexível e menos rígido.
Objetiva-se, assim, uma ideologia de interpretação do direito que permita a atualização do direito, sem violar a segurança jurídica. Em outras palavras, almeja-se alcançar um equilíbrio entre a ideologia estática e a ideologia dinâmica da interpretação jurídica.
Levando a análise ao objeto desta pesquisa, a teoria dos precedentes deve atuar no equilíbrio entre a segurança jurídica com a manutenção do status quo e a efetividade mediante o necessário desenvolvimento do Direito.
Nesse ponto, deve-se buscar na teoria dos precedentes a inspiração pela segurança jurídica, não deixando de lado a efetividade, que deve ser o foco na preparação e outorga da tutela jurisdicional, tendendo a acabar com o conflito, legitimamente, ante a sociedade civil.
Nesse cenário, a teoria dos precedentes assessora o encontro do ponto intermediário, produto do temperamento entre as exigências de certeza e confiabilidade e as exigências de flexibilidade e adaptabilidade às mudanças, em uma apropriada proporcionalidade entre a segurança jurídica e o desenvolvimento do Direito. Dessa forma, a segurança jurídica exige que seja ordenada a alteração dos precedentes, para que a manutenção da estabilidade possa coexistir com a capacidade de mudança intrínseca ao desenvolvimento da jurisprudência.
Entre esses dois pontos, busca-se encontrar um equilíbrio, que, entre tantos mecanismos, deve ser conquistado com a aplicação dos precedentes dos tribunais superiores em casos equivalentes, esfera em que existe uma necessidade de segurança jurídica mais elevada em busca da ordem desejada. No caso de ser ultrapassado um precedente, o juízo deve motivar de maneira correta sua decisão. Além do mais, é possível adotar efeitos prospectivos à modificação jurisprudencial que afeta a sociedade de um modo geral.
De todo o exposto, infere-se que, na tensão entre a estabilidade e a adequação da atividade judicial, adota-se o modelo judicial que assegure, mediante a teoria dos precedentes, a previsibilidade da aplicação do direito e sancione, dentro do razoável, mudanças de critério ou de interpretação na justiça do caso concreto.
Deve o Direito adequar-se às novas realidades. Porém, deve a inovação impactar minimamente as relações jurídicas passadas que se delongaram no tempo ou que dependem das consequências de eventos futuros previstos.
Dessa maneira, não se espera que tenham as partes sempre condições de presumir como será a decisão de um processo, logo, o que se ambiciona é uma surpresa na menor medida, posto que tal é recomendação da racionalidade.
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Graduada em Direito pela Universidade Estadual do Tocantins - UNITINS. Especialista em Direito Processual Civil pela Faculdade Única e Especialista em Direito Empresarial pela Faculdade Legale.
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